Muitos dogmas pairam sobre os verdadeiros propósitos e conceitos do espelho (digi) de Oxum em "solo batuqueiro". Em verdade mitológica Oxum carrega seu abebé, espécie de leque/abano de cobre (Africa), de forma arredondada, que reflete igual a um espelho (digi). Oxum é dotada de enorme vaidade e adora admirar sua beleza, utilizando-se de seu abebé ou do reflexo das próprias águas cristalinas de onde faz sua morada, nos rios e suas cachoeiras.
Na grande maioria, por este motivo a conotação de abebé ("abano reflexivo") ficou destorcida junto das concepções afro-brasileiras. Hoje utilizamos muito do espelho (digi) em nossos ritos, tanto nos assentamentos (Igba Orixá), como em trabalhos/ebós e, alguns até mesmo, nos ritos de "lavar a cabeça/orí" (popularmente chamado no Batuque). Ritual no qual se "liberta/rompe" a ligação espiritual do antigo sacerdote (Babá/Yá) e prepara o orí (cabeça) do consagrado para adentrar e receber sua nova família de axé (Ẹgbẹ́), seu novo sacerdote e costumes. Sendo o espelho representando e adaptado, muito bem, como um abebé.
Outro tabu entre os batuqueiros, se refere a questão do própio Orixá (Oxum) se refletir, admirar-se durante suas danças, manifestadas em seus consagrados, fazendo uso de seu espelho (representando seu abebé). Onde o Orixá manifestado é sempre orientado a "virar/girar" seu espelho, colocando seu reflexo para "fora" de seu rosto. Os adeptos confundem a concepção de "não reflexo da imagem", ligada a questão da vaidade humana, com a concepção propriamente dita do Orixá cumprir sua mitologia de admirar-se!
A vaidade é muito zelada dentro das tradições do Batuque por nossos ancestres, desde a "ocupação no santo" (popularmente chamado), até as sagradas obrigações e retiros, onde damos alimento ao nosso orí (cabeça) e Orixás. Segundo as tradições do Batuque, todos iniciados ou consagrados, não podem fazer uso de espelho (refletir sua imagem), quando em momento sagrado de resguardo e suas respectivas obrigações de santo. Motivo pelo qual se faz uma pausa para reflexão e ligação com sua espiritualidade, se desprendendo dos vícios e valores terrenos, como hábitos de vaidade, por exemplo. Sendo coberto com pano branco todos os espelhos contidos nos espaços de uso comum dos resguardados, inclusive nos banheiros. Na questão da "ocupação do santo" o rito fica mais cheio de mistério ainda, onde para impor a prática da "não vaidade" entre os adeptos, se estabelece que ao dizer ao iniciado que ele supostamente teria "se ocupado no santo", ele ficaria louco! Evitando assim que o adepto tivesse conhecimento, explanasse ou alguém pudesse lhe contar. Particularmente concordo e acho válido o zelo de nossos ancestres pelo exibicionismo da vaidade, neste ponto da "ocupação no santo", os dias atuais e suas disputas evidenciam e comprovam bem isso. Só trago em pauta para destacar o fato da forma imposta e a desinformação dos adeptos em alguns ritos.
Por outro lado, no Candomblé não se tem estes mesmos ritos, ou mitos, seus iniciados podem saber sobre o ato de "bolar/cair no santo", ou se "ocuparem", como chamamos no Batuque. Seus respectivos Orixás utilizam de seus espelhos (abebés) e se admiram conforme sua mitologia reza. Único ponto de convergência entre os ritos do Batuque e do Candomblé, é a questão do resguardo quanto ao uso do espelho (digi), quando o filho está "recolhido", de "obrigação com seu santo", que acredito partir da mesma concepção da privação a vaidade terrena.
O que fica claro que no Batuque temos uma cultura muito "cerrada", onde figuradamente falando, "pau é pau" e, "pedra é pedra", sem flexibilidades em suas condutas. Que neste caso a palavra "flexibilidade" seria mais adequada usar "sem entendimento de causa". Muitos Babás/Yás se quer sabem a real motivação de seus mitos, mas executam, pois assim aprenderam e ponto final (cerrado)! Muitas culturas impostas não são discutidas, não são estudadas, para assim poderem ser interpretadas de forma mais coerente. Jamais acharemos o "puro e verdadeiro" culto aos Orixás, pois somos dotados de uma cultura mista, formada por muitas diásporas, aliados as imposições católicas da época, a mescla cultural indígena e o período escravista. Ou seja, o Batuque, assim como o Candomblé, são religiões afro-brasileiras, não uma "cópia original" da identidade das religiões de matriz africana, que por sinal, também não são coesas entre seus inúmeros povos, reinos e tribos, junto de suas mitologias.
Contudo, o intuito deste texto é trazer o entendimento de que Oxum está dançando, se admirando, exibindo e jorrando seu puro axé de encanto, gratidão, leveza, doçura e beleza, muitas vezes acompanhada, além de seu espelho, com seu abebé, seu perfume e suas flores, quando manifestada. Ela não está refletindo a maldade ou feitiço (ajé/afofô) de ninguém, pelo contrário, Orixá está abençoando seu xirê, abençoando sua família (Ẹgbẹ́), expelindo o mal através do bem. Absorvam estes momentos "mágicos" e se desprendam das "viseiras", isso é o verdadeiro axé de Oxum!
Ore Yeye Ó! Fiderioman! Yá mi Oxum!
Axé!
Pai Daniel de Oxum
*imagem ilustrativa, retirada da internet (Google).